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O artigo foi inicialmente incluído na lei para não penalizar proprietários de imóveis rurais do bioma Amazônia, que viram a exigência de Reserva Legal elevada devido às taxas galopantes de desmatamento. Assim, quem tivesse mantido a sua floresta em 50% da área da propriedade quando essa era a exigência legal, não entraria em desconformidade quando a cobertura vegetal foi estendida a 80% da área total, nos anos 1990.
Mas o que foi pensado para um bioma específico acabou sendo entendido como válido juridicamente para todo o país. Agora, legisladores de diferentes Estados da Federação tentam se apropriar desse entendimento para ampliar o número de propriedades rurais isentas da recomposição total ou parcial de suas Reserva Legais. Em alguns casos, a argumentação ocorre também a partir do questionamento de nomenclaturas.
Aprovada na semana passada pela Assembleia Legislativa de São Paulo, a lei 219/14, que regulamenta no Estado o Código Florestal federal, provocou polêmica entre ambientalistas porque, entre outros pontos, evocou o artigo 68 para isentar propriedades do Cerrado paulista de recomposição florestal. O bioma perfaz cerca de 15% do Estado, cortando-o numa diagonal que passa por Barretos, Bauru e segue até a região de Itapeva. A alegação: a palavra “Cerrado” só passou a configurar na legislação brasileira em 1989, muito depois do início da sua ocupação – só poderia ser classificada como passivo ambiental, portanto, a supressão vegetal ocorrida após este ano.
A mesma argumentação vem sendo utilizada pela Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). A entidade afirma que a terminologia “campos sulinos” ou “bioma Pampa” só apareceu na letra da lei em 2001. “A lei falava em florestas e matas. Quem já veio ao Rio Grande do Sul sabe que o Pampa são gramíneas, ocupadas pelo homem há séculos”, diz Eduardo Condorelli, assessor técnico da entidade. “Defendemos que quem desmatou no Pampa até 2001 não precisa recompor os 20% de área de Reserva Legal”.
Maurício Guetta, advogado do Instituto Socioambiental (ISA), diz que o que está em jogo é uma ofensiva de assembleias para utilizar o artigo 68 e consolidar uma situação que a lei federal não permite. “De fato, a lei não falava em biomas até 1989, mas falava em florestas e demais formas de vegetação nativa. Trata-se de um entendimento pacífico e consolidado. Estão tentando forçar uma interpretação da lei e inserir anistia à ilegalidade”.
O temor de ambientalistas é que a aplicação irresponsável do artigo acabe por retirar “milhões de hectares” da regularização, já que boa parte da colonização do país se deu antes dessas datas de corte, privilegiando commodities agrícolas em detrimento do ambiente.
Se a retirada da obrigação de recomposição florestal de reservas paulistas causou incômodo, o debate promete ser ainda mais acalorado na assembleia gaúcha. Isso porque, ao contrário do Cerrado paulista, restrito a uma área menor e tomado hoje por grãos e cana, o Pampa se espraia por 63% do Rio Grande do Sul. E é também ali que a soja, principal cultura agrícola do Estado, tem avançado rapidamente sobre os campos por onde historicamente pasta o gado bovino.
Com a discussão em aberto, representantes do setor agrícola e de entidades conservacionistas refletem localmente antagonismos conhecidos na esfera federal. A Farsul rejeita o que chama de “engessamento de 20% da propriedade rural”, em alusão ao percentual obrigatório de cobertura no Pampa.
Com 5,1 milhões de hectares previstos para o plantio da oleaginosa no Estado nesta safra 2014/15, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a cultura poderia sofrer revés significativo caso tenha de cumprir a lei nacional. Isso porque o Código Florestal determina que a compensação da Reserva Legal deve ocorrer dentro das propriedades (diminuindo a área produtiva), ou no próprio Estado ou bioma. Um produtor paulista cuja fazenda está na Mata Atlântica, por exemplo, poderia compensar, em tese, em Alagoas. Os dois Estados estão dentro do mesmo bioma. Os produtores gaúchos não têm essa opção. No Brasil, o Pampa só ocorre dentro do Rio Grande do Sul.
Segundo ambientalistas, precisar o impacto da lei à produção de soja gaúcha ainda é difícil porque não há dados sobre o déficit de vegetação nativa. Isso só será possível saber quando os proprietários realizarem o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que não decola porque o Rio Grande do Sul ainda não regulamentou a sua lei estadual por causa de impasses como esse.
Para advogados ouvidos pelo Valor, a inclusão do artigo abre margem para interpretações e, com isso, a judicialização. A menção da Reserva Legal foi inserida na lei 7.803, de 1989, e estendeu a proteção aos biomas. Para o Pampa, o regramento veio só com a Medida Provisória 2.166-67, de 2001.
Mas de acordo com a advogada Ana Claudia de Mello Franco, da Tabet, Paulino, Bueno & Franco Advogados, uma interpretação possível leva em consideração o contexto maior de proteção às florestas e outras formas de vegetação nativa, e o respeito ao princípio da não vedação do retrocesso em matéria ambiental. “Nesse contexto, desde a vigência do decreto 23.793/1934, já havia a previsão, no artigo 23, da necessidade de se proteger um quarto das ‘matas’ existentes nas propriedades”, afirma ela. “Portanto, a partir de 1934 já havia uma proteção às matas, em cujo conceito estariam inseridas as florestas e demais formas de vegetação nativa. Sendo assim, o artigo 68 não poderia ignorar essa situação”.
Antonio de Azevedo Sodré, do Azevedo Sodré Advogados, diz que “invocar o fato de que não havia definição clara sobre bioma é um raciocínio difícil de prosperar”.
A notícia é do Jornal Valor Econômico.